O advogado e as afirmações realizadas em juízo: quais os limites?

Não é incomum nos depararmos no dia-a-dia da atividade de advogado, sobretudo em algumas ocasiões de forte debate e emoção, com afirmações praticadas por colegas que excedem o limite do razoável e desaguam no ataque pessoal à parte (e/ou seu advogado), ao promotor, juiz, serventuário e auxiliares da justiça.

Nestas situações, deve-se analisar com serenidade e cuidado o exato alcance das palavras e expressões utilizadas, eis que o bom senso, muitas vezes esquecido, pode evitar que um erro acarrete em indesejáveis consequências penais, cíveis e administrativas.  

Assim, antes de tudo é importante situar o exame sob a ótica da Lei Federal nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), que dispõe: 

 “Art. 7º São direitos do advogado: 

(…)

II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia; 

(…)

§ 2º O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer. (Vide ADIN 1.127-8)” 

Logo se verifica que o crime de calúnia (Código Penal, art. 138)[1], foi excluído da imunidade prevista no Estatuto da Advocacia, conforme examinado pela doutrina:

“Excluem-se da imunidade profissional as ofensas que possam configurar crime de calúnia (…). A tanto não poderia chegar a inviolabilidade, sob pena de esmaecer sua justificação ética, legalizando os excessos, que, mesmo em situações de tensão, o advogado nunca deve atingir. Nestes casos, responde não apenas disciplinarmente mas também no plano criminal. Contudo, mesmo na hipótese de calúnia, é admissível a exceptio veritas”. [Lobo, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 4ª ed. 2007. Saraiva. pg. 63]

Com efeito, consoante entendimento jurisprudencial reiterado no Supremo Tribunal Federal, o art. 7.º, § 2.º, da Lei n.º 8.906/94, determina a imunidade profissional do advogado em relação aos crimes de injúria e difamação, por ofensas proferidas em juízo, na discussão da causa, reconhecendo que trata-se de conduta atípica.

“HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. ARTIGO 5º, INCISOS LV E LXIX DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. AUSÊNCIA DE OFENSA. INJÚRIA E DIFAMAÇÃO. IMUNIDADE DO ADVOGADO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.

1. Ofensa a autoridades militares federais, proferidas na discussão da causa. Competência da Justiça Militar (CPM, art. 9º, inc. III).

2. Conferida a prestação jurisdicional, em decisão devidamente fundamentada, embora em sentido contrário aos interesses da parte, não se há de falar em violação do disposto no art. 5º, incisos LV e LXIX da Constituição do Brasil.

3. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está alinhada no sentido de o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria e difamação qualquer manifestação de sua parte no exercício dessa atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo de sanções disciplinares perante a Ordem dos Advogados do Brasil. No caso concreto, o recorrente estava postulando na esfera administrativa em favor de seu cliente. De outra banda, a representação feita à Ordem dos Advogados foi arquivada, nos termos do § 2º do art. 73 da Lei n. 8.906/94.

Recurso em habeas corpus provido para determinar-se o trancamento da ação penal.” (RMS 26975, Relator Min. EROS GRAU, SEGUNDA TURMA, DJe de 14/08/2008 – destacou-se)

“HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A HONRA. ART. 215 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. AUSÊNCIA. IMUNIDADE MATERIAL DO ADVOGADO. REPRESENTAÇÃO DIRIGIDA À OAB. PRECEDENTES. CONCESSÃO DA ORDEM. 1. As expressões tidas por ofensivas foram proferidas por advogada que agia no interesse de seus clientes, em representação dirigida à OAB, para que fosse enviada ao Ministério Público Militar e ao 3° Comando Naval. 2. Eventual conflito aparente entre o art. 215 do Código Penal Militar e o art. 7°, § 2° da Lei 8.906/94 deve ser solucionado pela aplicação deste último diploma legal, que é lei federal especial mais recente e amplia o conceito de imunidade profissional do advogado. Precedentes. 3. A acusação por crime contra a honra deve conter um lastro probatório mínimo, no sentido de demonstrar a existência do elemento subjetivo do tipo. Conclusão que não pode ser extraída como consequência lógica do mero arquivamento da representação por ausência de suporte probatório. 4. Afasta-se a incidência da norma penal que caracterizaria a difamação, por ausência do elemento subjetivo do tipo e também por reconhecer-se ter a paciente agido ao amparo de imunidade material. 5. Habeas corpus provido para deferir o trancamento da ação penal, por ausência de justa causa.” (HC 89973, Relato Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJ de 24/08/2007 – destacou-se)

Porém, eventuais excessos praticados pelo advogado podem ser objeto de pretensão indenizatória, pois para a incidência da referida imunidade, as afirmações e manifestações devem guardar estrita relação com a matéria objeto da discussão judicial, conforme definido pela doutrina:

“(…) pelo princípio da imunidade judiciária, não constituem crime contra a honra as ofensas irrogadas em juízo pela parte ou por seu procurador, desde que guardem iniludível vinculação com o objeto da causa, seja na narrativa dos fatos, seja igualmente no exercício do direito de defesa”. [Cahali, Yussef Sahid. Dano Moral. 3ª ed. 2005. Editora Revista dos Tribunais. pg. 355].

E as manifestações em relação ao objeto da causa e sua pertinência, são as:

“(…) afirmações necessárias, fundamentais e que, se recusadas, podem ditar o insucesso do litigante (…)”. [Stoco, Rui. Tratado de responsabilidade civil – Doutrina e jurisprudência. 7ª ed. 2007. Editora Revista dos Tribunais, pg. 517]

Esse entendimento tem sido consagrado na jurisprudência:

“RECURSO ESPECIAL. DANO MORAL. OFENSA PRATICADA POR ADVOGADO CONTRA PROMOTORA DE JUSTIÇA. CONDUTA NÃO ABRANGIDA PELA IMUNIDADE PROFISSIONAL. MONTANTE INDENIZATÓRIO. REVISÃO DO VALOR NO STJ.

1 – A imunidade profissional estabelecida pelo art. 7º, § 2º, da Lei 8.906/94, não abrange os excessos configuradores de delito de calúnia e desacato e tem como pressuposto que “as supostas ofensas guardem pertinência com a discussão da causa e não degenerem em abuso, em epítetos e contumélias pessoais contra o juiz, absolutamente dispensáveis ao exercício do nobre múnus da advocacia” (passagem extraída do voto Ministro Sepúlveda Pertence no HC 80.536-1-DF).

2 – Precedentes do STJ no sentido de que tal imunidade não é absoluta, não alcançando os excessos desnecessários ao debate da causa cometidos contra a honra de quaisquer das pessoas envolvidas no processo, seja o magistrado, a parte, o membro do Ministério Público, o serventuário ou o advogado da parte contrária.

3 – O valor devido a título de danos morais é passível de revisão na via do recurso especial se manifestamente excessivo ou irrisório.

Redução do valor da indenização, tendo em vista os parâmetros da jurisprudência do STJ, e levadas em consideração as circunstâncias do caso concreto, notadamente a gravidade das ofensas.

4 – Recurso especial a que se dá parcial provimento.”

(REsp 919.656/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 04/11/2010, DJe 12/11/2010 – destacou-se)

“RECURSOS ESPECIAIS – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – OFENSA A HONRA E DIGNIDADE DE MAGISTRADO – NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL – NÃO OCORRÊNCIA – CERCEAMENTO DE DEFESA – NÃO VERIFICAÇÃO – JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE – POSSIBILIDADE – DISTRIBUIÇÃO DO FEITO – FISCALIZAÇÃO DAS PARTES – POSSIBILIDADE – INTIMAÇÃO – DESNECESSIDADE – IMUNIDADE PROFISSIONAL DO ADVOGADO – RELATIVA – EXCESSO PRATICADO – VERIFICAÇÃO – QUANTUM – RAZOABILIDADE – INTERVENÇÃO – IMPOSSIBILIDADE – REDUÇÃO DE OFÍCIO – NÃO OCORRÊNCIA – RECURSOS ESPECIAIS IMPROVIDOS.

I – Não consubstancia cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide, isoladamente considerado, na hipótese de o magistrado, destinatário das provas, considerar despicienda a produção de outras provas;

II – O sorteio do Juízo é público, e, como tal, poderá ser acompanhado, fisicamente, pelas partes e/ou por seus procuradores, fiscalizando se as regras postas são efetivamente observadas, com o fim de evitar eventual fraude. O exercício do direito de fiscalizar a distribuição dos feitos, entretanto, é de exclusiva iniciativa da parte interessada, não sendo o seu exercício condicionado a qualquer intimação, o que, inclusive, revelar-se-ia de todo contraproducente;

III – A imunidade profissional, indispensável ao desempenho independente e seguro da advocacia (função essencial à Justiça, com previsão constitucional no artigo 133), e que tem por desiderato garantir a inviolabilidade do advogado por seus atos e manifestações no exercício profissional, desde que dentro dos limites da lei, deverá ser exercida sem violar direitos inerentes à personalidade (igualmente resguardados pela Constituição Federal), como a honra e a imagem, de quem quer que seja, sob pena de responsabilização civil pelos danos decorrentes de tal conduta;

IV – A comunicação de fatos que denotem inadequada conduta de magistrado dirigidas ao Órgão de Cúpula do Tribunal de Justiça (Corregedoria Geral de Justiça), ao qual o magistrado é vinculado, efetivada por advogado ou qualquer outro interessado, mostra-se necessária e salutar para a administração da Justiça;

V – Sobressai, de forma cristalina, que o causídico, a pretexto de acoimar de imparcial o julgamento proferido pelo magistrado na causa em que atuara como causídico da parte sucumbente, desbordou de seu direito de denunciar suposta má-conduta do magistrado, vilipendiando, por conseguinte, a honra e dignidade daquele;

VI – O Tribunal de origem, após sopesar as peculiaridades do caso em concreto, em observância à capacidade econômica das partes, sem descurar-se do caráter propedêutico da sanção, fixou importância que bem atende aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade;

VII – Recurso especial do recorrente JOÃO BASSIT NETO improvido.

recurso especial do recorrente SEBASTIÃO DE MORAIS FILHO parcialmente provido.”

(REsp 1065397/MT, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/11/2010, DJe 16/02/2011 – destacou-se)

Portanto, em resumo, pode-se concluir que é possível, em tese, a imputação aos advogados que pratiquem excessos de linguagem cometidos em suas manifestações judiciais: o crime de calúnia (Código Penal, art. 138), além da responsabilidade civil e, ainda, a representação perante a Ordem dos Advogados do Brasil.

Porém, como já dito no início, é recomendável a cautela e o bom senso para evitar-se agressões mútuas no calor do debate que, acima de tudo, é demonstração de civilidade e educação.

Autor: Sergio Eduardo Martinez (OAB/RS 32803)

sergioeduardo@martinezadvocacia.com.br

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[1] Art. 138 – Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:

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